domingo, 3 de fevereiro de 2008

Ponto de vista: Lya Luft - "Cotas: o justo e o injusto"

"A idéia das cotas reforça conceitos nefastos: o de que negros são menos capazes e precisam de um empurrão e o de que a escola pública é péssima e não tem salvação"
O medo do diferente causa conflitos por toda parte, em circunstâncias as mais variadas. Alguns são embates espantosos, outros são mal-entendidos sutis, mas em tudo existe sofrimento, maldade explícita ou silenciosa perfídia, mágoa, frustração e injustiça.

Cresci numa cidadezinha onde as pessoas (as famílias, sobretudo) se dividiam entre católicos e protestantes. Muita dor nasceu disso. Casamentos foram proibidos, convívios prejudicados, vidas podadas. Hoje, essa diferença nem entra em cogitação quando se formam pares amorosos ou círculos de amigos. Mas, como o mundo anda em círculos ou elipses, neste momento, neste nosso país, muito se fala em uma questão que estimula tristemente a diferença racial e social: as cotas de ingresso em universidades para estudantes negros e/ou saídos de escolas públicas. O tema libera muita verborragia populista e burra, produz frustração e hostilidade. Instiga o preconceito racial e social. Todas as "bondades" dirigidas aos integrantes de alguma minoria, seja de gênero, raça ou condição social, realçam o fato de que eles estão em desvantagem, precisam desse destaque especial porque, devido a algum fator que pode ser de raça, gênero, escolaridade ou outros, não estão no desejado patamar de autonomia e valorização. Que pena.

Nas universidades inicia-se a batalha pelas cotas. Alunos que se saíram bem no vestibular – só quem já teve filhos e netos nessa situação conhece o sacrifício, a disciplina, o estudo e os gastos implicados nisso – são rejeitados em troca de quem se saiu menos bem mas é de origem africana ou vem de escola pública. E os outros? Os pobres brancos, os remediados de origem portuguesa, italiana, polonesa, alemã, ou o que for, cujos pais lutaram duramente para lhes dar casa, saúde, educação?

A idéia das cotas reforça dois conceitos nefastos: o de que negros são menos capazes, e por isso precisam desse empurrão, e o de que a escola pública é péssima e não tem salvação. É uma idéia esquisita, mal pensada e mal executada. Teremos agora famílias brancas e pobres para as quais perderá o sentido lutar para que seus filhos tenham boa escolaridade e consigam entrar numa universidade, porque o lugar deles será concedido a outro. Mais uma vez, relega-se o estudo a qualquer coisa de menor importância.

Lembro-me da fase, há talvez vinte anos ou mais, em que filhos de agricultores que quisessem entrar nas faculdades de agronomia (e veterinária?) ali chegavam através de cotas, pela chamada "lei do boi". Constatou-se, porém, que verdadeiros filhos de agricultores eram em número reduzido. Os beneficiados eram em geral filhos de pais ricos, donos de algum sítio próximo, que com esse recurso acabaram ocupando o lugar de alunos que mereciam, pelo esforço, aplicação, estudo e nota, aquela oportunidade. Muita injustiça assim se cometeu, até que os pais, entrando na Justiça, conseguiram por liminares que seus filhos recebessem o lugar que lhes era devido por direito. Finalmente a lei do boi foi para o brejo.

Nem todos os envolvidos nessa nova lei discriminatória e injusta são responsáveis por esse desmando. Os alunos beneficiados têm todo o direito de reivindicar uma possibilidade que se lhes oferece. Mas o triste é serem massa de manobra para um populismo interesseiro, vítimas de desinformação e de uma visão estreita, que os deixa em má posição. Não entram na universidade por mérito pessoal e pelo apoio da família, mas pelo que o governo, melancolicamente, considera deficiência: a raça ou a escola de onde vieram – esta, aliás, oferecida pelo próprio governo.

Lamento essa trapalhada que prejudica a todos: os que são oficialmente considerados menos capacitados, e por isso recebem o pirulito do favorecimento, e os que ficam chupando o dedo da frustração, não importando os anos de estudo, a batalha dos pais e seu mérito pessoal. Meus pêsames, mais uma vez, à educação brasileira.

Lya Luft é escritora.
Fonte: Revista Veja, Edição 06/02/08. Link para not[icia original: http://veja.abril.com.br/060208/ponto_de_vista.shtml
Postagem: Cris, 2º B

5 comentários:

Anônimo disse...

Discutir e opinar sobre cota e programas sociais, sentado de camarote, no ar condicionado, com água filtrada ou mineral é muito mais fácil e quem sabe até mais proveitoso !!
Agora com fome, sem estudo e sem nenhum apoio institucional, com a falta de água potável entre outras tantas mazelas, é mais difícil e doloroso esperar tantas discusões sobre como e quanto se minorar as injustiça sociais deste país.
Então é bom incluir, é bom distribuir renda, é bom tirar da marginalidade toda uma imensa massa de brasileiros que ainda continuam sendo injustiçados, podados e servindo de massa de manobra na mão de poucos.

Anônimo disse...

Tratar a intolerância ao diferente como “natural” é continuar no “senso comum” e à medida que não se questionar, não se discutir ou refletir sobre a permanência de comportamentos racistas e homogeneizadores, é permitir a continuidade histórica do preconceito ao negro. Aponta–se para a necessidade de se estudar e explicar a estabilidade e a cristalização de comportamentos racistas, para então se poder desmontá-los. A desmontagem da opressão do preconceito, do rótulo, será, dentre outros, um passo para se processar a inclusão real e não ilusória do sujeito negro na sociedade. Essa preocupação de inclusão deve ser uma meta a ser alcançada, e ainda, um processo para se trabalhar a eliminação da exclusão adiada. É preciso ter clareza de que a inclusão do negro na escola e na sociedade como um todo, é um processo lento e gradual. Implica na redefinição de conceitos, de imagens, de valores, de revisão ética do convívio entre sujeitos diferentes e heterogêneos. Sendo o lugar da produção de conhecimentos, portanto uma das instituições formadoras dos sujeitos sociais, a escola deverá estruturar-se de forma a se comprometer nesse processo político de transformação da sociedade para um convívio respeitoso, pacífico e amigo. O diferente deve ser visto como aquele que integra, soma, e não como o que divide socialmente. A luta de Martin Luther King, líder pacifista, deve ser a meta desta escola: “Pessoas oprimidas não podem permanecer oprimidas para sempre”.

Anônimo disse...

O q eu acho + interessante nisso td é como a sociedade racista se defende contra o uso das cotas. Os argumentos são sempre os mesmos: vai gerar preconceito, é racismo contra o branco...bla bla bla.
O q não veem ou fingem não ver é q o racismo já existe e q as cotas são uma forma de incluir pessoas q são constantemente afastadas das universidades.
Quem disse q o cotistas não consegue sua vaga por mérito proprio. Por acaso é chegar no vestibular dizerq é negro q não precisa nem fazer prova?
O vestibular é uma disputa injusta. "É uma corrida em q uns estão a 500 anos e outros comçaram a 100 com os pés amarrados pela sociedade racista"- Romualdo Neto.
Cota não é esmola do governo é uma ação afirmativa conquistada pelo movimento negro.
Antes de escrever bobagens era bom se informar um pouco.

Anônimo disse...

Cotas raciais é hipocrisia:
1- O certo seria cota para pobres, e não para uma ou outra raça (etnia) selecionada.

2- É besteira fingir que não existem brancos pobres, existem muitos que só perdem o espaço com estas cotas para negros. sou totalmente a favor de Lia Luft, que diz o que ninguém tem coragem por medo de ser taxado de racista..

3- Todos aqui sabemos que quando as cotas raciais foram criadas foi criada também outra lei, a que torna o racismo Crime Inafiançável assim ninguém iria reclamar...quem é esse "ninguém", adivinhem?!

Anônimo disse...

Corrigindo:
A Constituição de 1988, em seu art. 5º - inc. XLII, passou a considerar a prática do racismo como crime inafiançável e imprescritível.

O legislador falou em racismo, mas na verdade, o que ele queria dizer era preconceito. Preconceito é gênero, do qual o racismo é uma espécie. Por racismo, entende-se um preconceito que abrange a raça e no máximo, a cor das pessoas. O racismo não envolve preconceito de sexo, de estado civil ou de outra natureza.

O racismo então deixou de ser mera contravenção e ganhou o "status" de crime. Mas que crime? - Um crime particular, extraordinário, porque esse crime está sujeito sempre à pena de reclusão e mais do que isso, é um crime inafiançável e mais ainda, um crime imprescritível. Na atual reforma, não é mais utilizado para proteger vítimas de outra etnia qualquer, a não ser os "negros", somente os "negros", não há como não reclamar...