terça-feira, 2 de junho de 2009

Opinião: Estado policialesco

Afirmação de uma autoridade estadual de que a polícia está habilitada a “caçar” e a prender o infrator de trânsito notificado a entregar sua CNH que não o fizer, preocupa pelo tom autoritário que contempla. Os estados não tem competência para legislar em matéria criminal, de maneira que qualquer regulamentação estadual autorizando as forças policiais a perseguirem cidadãos, porque descumpriram o contido nas regras administrativas de trânsito, representa um ataque à estrutura constitucional brasileira.

A polícia só pode perseguir quem se achar em flagrante, e não sair atrás de pessoas que cometem irregularidade administrativa. A prisão para quem se acha em flagrante só ocorre caso se inicie uma perseguição no momento em que a pessoa está cometendo ou acabou de cometer o crime e que não se interrompa até a captura do fugitivo, jamais na criação de um Estado “policialesco” de feição ditatorial, em que a polícia persegue todos e chega a invadir o domicílio das pessoas que descumprem regulamentos administrativos.

A não entrega da CNH pelo motorista notificado de forma irregular, pois a regulamentação da notificação depende de ato normativo nacional pelo Contran, diferente do recém-afirmado, não caracteriza crime de desobediência, pois a suspensão da CNH já constitui medida sancionatória, não sendo legítimo ao Estado exigir que pessoa se imponha voluntariamente a punição.

Não havendo como exigir o voluntário cumprimento da sanção e sendo irregular a notificação, não há crime de desobediência, pois a existência de ordem regular é requisito para este delito.

Ainda que crime de desobediência houvesse, não poderia ser realizada a prisão, pois a competência para seu julgamento é dos juizados especiais, vez que a pena em abstrato varia entre 15 dias a 6 meses, tendo os juizados especiais competência para o julgamento das infrações penais cuja pena máxima não supere dois anos.

A competência para julgamento faz incidir vedação absoluta para a prisão em flagrante, bastando observar o contido na Lei nº 9.099/95, que regulamenta os juizados especiais: “Ao autor do fato que, após a lavratura do termo, for imediatamente encaminhado ao juizado ou assumir o compromisso de a ele comparecer, não se imporá prisão em flagrante, nem se exigirá fiança”, ou seja, ocorrido compromisso do infrator de comparecer no dia da audiência está vedado o cerceamento de sua liberdade.

O policial que executa a prisão, bem como a autoridade que determina que o mesmo o faça, é que cometem crime, pois o artigo 4º, “a”, da Lei de Abuso de Autoridade estabelece: “constitui também abuso de autoridade: a) ordenar ou executar medida privativa de liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder.”

A simples perseguição de pessoas, sem que tenham cometido crime, já faz o agente público incidir na Lei de Abuso de Autoridade, especificamente no artigo 3º, “a”, que diz: “Constitui crime de abuso de autoridade qualquer atentado:a) à liberdade de locomoção.”

A opinião pública paranaense está chocada com a trágica morte de dois jovens em um acidente ocasionado por motorista com a CNH suspensa, mas é preciso reconhecer que caso o motorista tivesse entregue sua CNH a morte destes jovens provavelmente ocorreria, pois a entrega da habilitação não assegura que o motorista não siga dirigindo.

A sociedade mesmo comovida pelo fato chocante ocorrido deve reafirmar seu compromisso com o Estado Democrático de Direito. A democracia depende do desafio de defendê-la nos momentos em que mais agressivas são as situações enfrentadas.

A atualidade permite ao povo paranaense dar um exemplo nacional não se entregando à sedução do discurso de vingança e da criação de um Estado autoritário e “policialesco”, reafirmando o compromisso democrático, e, em razão das últimas declarações da autoridade pública, deixando claro que não aceita que a polícia persiga cidadãos por irregularidades administrativas e o que é o mais grave, ouse prendê-los.


Adel El Tasse é advogado, procurador federal e professor de Direito Penal

Fonte: Site Gazeta do Povo Online. Link para notícia original: http://portal.rpc.com.br/gazetadopovo/opiniao/conteudo.phtml?id=891699&ch

Postagem: Cris, PUC, Direito, 3o ano B

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