quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Quebrando as fronteiras rígidas do conhecimento

Talvez o verbo certo seja “relativizar” tais fronteiras. O essencial, mais do que a exatidão na escolha de um termo, é salientar a necessidade, cada vez mais premente, de se unir os ramos do conhecimento. Não digo “misturar” tudo em um “angu” superficial e ignorante. Pelo menos, rechear de pontes inteligentes os diversas domínios. É velha, mas sempre pertinente, a definição daquele que só se interessa pela própria especialidade: “especialista é aquele que sabe cada vez mais de cada vez menos”. No plano microscópico ele é gênio. Na compreensão global, se não uma besta — palavra grosseira —, pelo menos um alienado do mundo em que vive. Talvez pior: um pavão, cheio de si, porque no conhecimento minucioso dos detalhes do seu piolho particular ninguém o suplanta. Pelo menos é o que ele imagina.

Tais considerações vieram-me à mente após ler um artigo sensatíssimo, no jornal “O Estado de S. Paulo”, de 3-8-09, do prof. Jerson Kelman, professor da Coppe-UFRJ. Ele foi diretor-presidente da Agência Nacional de Águas e diretor-geral da Aneel – Agência Nacional de Energia Elétrica.

Nesse artigo, “A bala perdida no Senado”, Kelman salienta a necessidade de não ver as coisas isoladamente: (...) “sem um sistema de gerenciamento capaz de harmonizar os interesses conflitantes no uso dos rios ocorre uma babel em que cada setor ignora a existência do outro. Por exemplo, o setor agrícola e o energético comportam-se como se as águas pudessem ser utilizadas de forma exclusiva, respectivamente para a irrigação e para a produção de eletricidade. Outro exemplo: a autoridade estadual permite que se faça uma captação ou se lance um efluente num rio sob sua jurisdição, sem atentar para as conseqüências sobre a quantidade e qualidade utilizada por outros usuários localizados rio abaixo, às vezes em outros Estados da Federação”.

A observação acima serve como uma luva para a idéia que venho (monotonamente) incentivando ha meses, talvez para desespero de alguns leitores que entram em convulsão à simples menção da necessidade de um governo democrático global. Se mesmo dentro de um país de regime federativo se constata a necessidade do estado pensar no bem estar do estado vizinho — antes de empreender determinada obra, ou planejar um sistema —, o que não se dirá da convivência mundial, cada vez mais estreita? Há uma estreita analogia entre “estados soberanos”, na área internacional e “estados” — vizinhos ou não — dentro de uma mesma federação.

Em termos de água, mero exemplo, pergunta-se: se um país prevê futura escassez, tem ele o direito “soberano” — egoísmo garantido pela força — de represá-la, mesmo que com isso arruíne a agricultura e o abastecimento de um vizinho país (ou imensa coletividade sem status de Estado), situado em nível mais baixo? Qualquer pessoa, mesmo esqueleticamente justa, dirá que o interesse da população do país ou povo vizinho, não pode ser ignorado. Se o for, faltará água na região menosprezada, mas “em compensação” surgirá uma grande represa de ódio líquido — inventaram mais essa, “líquido”, em política internacional... —, provavelmente povoada com revoltados terroristas, caso não haja via legal — relativamente rápida e eficaz — para solução do conflito entre os Estados soberanos. E essa via legal o planeta não tem. Basta dizer que qualquer país, para poder ser julgado em uma demanda ajuizada na Corte Internacional de Justiça, precisa aceitar a jurisdição. É julgado apenas se assim concordar. Sabendo estar errado, não concorda, claro. Medo da pressão internacional? Nem sempre. Tem cabimento um atraso jurídico desse porte em pleno século XXI?

A justiça internacional ainda sofre grandes limitações institucionais. Certamente para desespero, embora não verbalizado, de seus competentes juízes que, provavelmente, gostariam de poder trabalhar com mais desenvoltura, fazendo justiça em maior escala, sem peias políticas. Competentes magistrados internacionais, convocados em todas as partes do planeta, não podem ficar proclamando, a torto e a direito, os empecilhos legais para poder julgar conflitos que não podem ser julgados em razão de uma nutridíssima concepção de soberania que precisa, urgente, perder alguns de quilos. Nas federações em geral, cada estado ou província cuida dos “assuntos locais” mas não decide sobre relações internacionais, nem declara guerra ao estado vizinho ou a outro país. Muito menos pode um estado da federação dizer que “não aceita ser julgado” numa demanda qualquer, ajuizada pela União ou Estado vizinho da mesma federação. O mesmo precisa ocorrer na área internacional. A noção de soberania precisa ser relativizada, para não se transformar em empecilho para um mundo mais justo e, conseqüentemente, menos sujeito a guerras, matanças, fome e terrorismo.

Voltando ao artigo do prof. Jerson Kelman — que nas entrelinhas revela-se um intelectual equilibrado e sem vaidade — ele acentua, como disse de início, a necessidade da administração federal abordar o problema das águas de forma global, examinando repercussões das decisões em todas as áreas em que vão ocorrer conseqüências.

Um outro item que demonstra a ligação íntima de assuntos aparentemente separados está na conexão entre o excesso populacional e os enredados esforços para a construção da paz. Pais ricos, ou remediados, têm poucos filhos. Pais pobres geram abundante descendência. Excesso que leva, quase fatalmente, ao desemprego, criminalidade de rua (não do colarinho branco —, aí trata-se de “vocação”) e migrações desordenadas em busca de países que ofereçam mais oportunidades. Ou pelo menos alguma oportunidade, porque em certas regiões de miséria, simplesmente não há qualquer chance de progresso individual, seja qual for sua força de vontade. Imagine-se o leitor nascendo hoje, de família pobre, no Sudão, Somália, Zimbábue ou outro país paupérrimo. Mesmo tendo, por sorte, uma feliz combinação de genes ligados à inteligência, sua desnutrição dentro do útero e nos primeiros anos de vida minará o pleno desenvolvimento de seu cérebro.

A promissora invenção da União Européia já se defronta com críticas e dificuldades. E a União Européia é um “ensaio” ou “ovo” informal de um governo mundial. Se ela falhar, falhará também, por “contágio”, a idéia de uma governança global, o que será uma lástima. Isso porque os pobres do Leste Europeu, em grande número — o fator quantidade minando a qualidade de qualquer idéia —, afluem para os países mais ricos, perturbando sua economia. Como precisam trabalhar, aceitam salários mais baixos, o que aumenta o desemprego dos trabalhadores locais, que passam a apoiar políticos de direita, hostil aos estrangeiros. Hostilidade de conveniência, mas de qualquer forma, hostilidade. E essa prevenção também causa ressentimentos dos governos de outras regiões — Brasil, por exemplo —, que encaram como ofensa a desconfiança com que seus cidadãos são tratados nos aeroportos europeus, mesmo como simples turistas. Qualificação que o país receptor vê com reserva, supondo que o moço tenha desembarcado com a intenção de ali morar e trabalhar.

O exagero populacional também gera efeitos não estritamente econômicos, relacionados com mero excesso de mão de obra. O econômico transforma-se em racial. Pior, racista. Explico: como os “invasores’ são, no geral, mais escuros (africanos e sul-americanos), ou de feições árabes, a ojeriza pelos imigrantes, “concorrentes desleais” — porque aceitam salários menores, sendo preferidos pelos patrões — acaba se transfigurando em um problema de cor, ou traços fisionômicos. A “raça” do imigrante acaba levando a culpa pelo desemprego dos brancos no país hospedeiro. Políticos locais, sempre à cata de votos, aproveitam a onda de animosidade e elaboram políticas que tendem a marginalizar os “invasores” mais escuros. Daí as explosões de desproporcionada violência — incêndios e depredações — que ocorrem ante a menor “provocação” da polícia. No fundo, no fundo, toda aquela violência origina-se da fertilidade incontrolada. A mera quantidade gerando a má-qualidade na convivência humana.

Um outro exemplo da conexão entre o excesso de nascimento nas camadas mais pobres e conflitos sangrentos duradouros entre povos está no que ocorre no Oriente Médio. Fosse bem menor o afluxo de judeus procurando, compreensivelmente, “um lar em Israel”, após a criação desse estado, a paz com os palestinos teria tido mais chance de ser alcançada. Menos árabes teriam sido expulsos das áreas que ocupavam. Conseqüentemente, o ressentimento palestino teria sido menor. O mesmo se diga do ódio de Bin Laden, estimulado com o ressentimento palestino. Talvez nem existisse o atentado de 11-9-2001. Ocorre que não havia — nem na época nem agora — uma autoridade mundial capaz de dar um “pare!” às sucessivas levas de judeus que queriam, finalmente, e em excesso, poder morar num país próprio, Israel.

Ainda hoje, qual o principal espinho que dificulta a solução do problema da criação de dois estados na antiga Palestina? O excesso de judeus, não abonados, que se instalam na Cisjordânia. Vêm de toda parte, e o governo israelense não se sente confortável para expulsar seus irmãos de raça ou religião. E porque tais colonos se instalam na Cisjordânia? Capricho? Não. Instalam-se ali porque são relativamente pobres, numerosos e não têm recursos para se instalarem em regiões tranqüilas e confortáveis dentro das principais cidades. Sempre o problema da quantidade.

Quando se fala em “judeu”, pensa-se logo em “judeu rico”, mas isso não corresponde à realidade. Judeu favelado, miserável, pelo que sei, praticamente não existe hoje no mundo. Consta — não sei se é verdade — que os judeus demonstram uma solidariedade acima do habitual para com seus irmãos menos afortunado. Mas, se não existe judeu miserável, há milhares deles, da classe média baixa, ou próxima da baixa, que desejam viver em Israel. Não podendo comprar casa ou apartamento nos melhores bairros das cidades israelenses, procuram se instalar na Cisjordânia, mesmo pagando o preço da inquietação oriunda da vizinhança árabe, compreensivelmente ressentida com a perda de seus espaços ocupados há centenas de anos.

Esse problema do excesso de gente, em todo o planeta, procurando um lugar ao sol — e empurrado para a “sombra” os menos afortunados — leva a uma indagação: um eventual “governo mundial” deve abolir as fronteiras entre os países? De forma alguma! Pelo menos, inicialmente. Se uma política de manutenção de controle contra as migrações desordenadas tivesse sido mantida, a União Européia estaria menos sujeita a críticas dos próprios europeus. Isso quer dizer que regiões pobres devem permanecer pobres? Não. Mantenham-se as barreias usuais, abertas ao turismo e com dosagem equilibrada no permitir o ingresso dos trabalhadores que faltem no países mais avançados. Em contraprestação à restrição, os países mais ricos destinariam substancial ajuda financeira e técnica aos países mais pobres, de tal modo que possam oferecer emprego e progresso às suas populações. Enfim: permitir que as pessoas possam viver dignamente sem ter que migrar para outros países. Não esquecer que nessas migrações os imigrantes carregar seus costumes e crenças que acabam colidindo com a cultura local, aumentando a hostilidade de ambos os lados. Muçulmanos na França, Alemanha e Inglaterra, fiéis a suas origens, causam problemas de convivência com os locais. Tudo isso não é bom para a idéia de um governo mundial.

Mesmo em países como o Brasil, se o governo federal houvesse se empenhado, firmemente, de cem anos para cá, em estimular economicamente suas regiões mais pobres, inclusive desestimulando a maternidade irresponsável, certamente não teríamos hoje as gigantescas favelas das capitais do Sudeste, que acabam gerando problemas e infelicidade inclusive aos próprios moradores. Estes não saíram de seus Estados por razões turísticas. Foram, de certa forma, forçados a isso. Presumo que todo favelado brasileiro preferiria, “se não fosse incômodo”, morar em casa ou apartamento confortável, em região tranqüila, sem tiroteios, balas perdidas e ameaças de traficantes ou justiceiros.

Em resumo, famílias muito pobres e numerosas, além de geralmente infelizes, põem em perigo a criação de um mundo melhor. Como salientei de início, todos os problemas se relacionam. E alguns são bem mais graves que outros, como é o caso do excesso de gente. Mesmo na classe média, o problema do excesso já atormenta a jovem — e não tão jovem. Rapazes e moças que saem, aos borbotões, da universidades, já não sabem o que fazer com o diploma que têm nas mãos. O mercado de trabalho está, no geral, saturado. Quem está bem instalado na profissão, não vê com simpatia o chegada de novos concorrentes. Reage, ou reagirá, dificultando o registro dos novos. Quando me formei em Direito, para cada vaga na magistratura havia dez, doze candidatos. Hoje contam-se às centenas os concorrentes.

Resumindo, e repetindo o que já disse em artigos anteriores: se o mundo quiser — não há alternativa racional — funcionar como um relógio bem ajustado, precisa pensar, desde já, numa solução abrangente e corajosa do controle da natalidade. Com prêmios, incentivos, sem violências, porque aí será pior. Se até o gado polui o meio ambiente, com suas emanações, o que não se dirá do ambicioso boi humano, digo, ser humano, sempre propenso a levar em conta apenas seu conforto individual e o futuro da prole. Essa preocupação instintiva de proteger a prole explica o nepotismo. “O resto que se dane! Se eu não proteger minha ninhada, mesmo com barba, quem a protegerá, neste turbulento mundo moderno?”

Sobretudo, precisa acostumar-se a ver os fenômenos não isoladamente, como aconselha o Prof. Jerson Kelman.

Escrito por: Francisco Cesar Pinheiro Rodrigues (Escritor. Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo).

Fonte: Site Jus Vigilantibus. Link para artigo original: http://jusvi.com/artigos/41347

Postagem: Cris, PUC, Direito, 3o Ano B.

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